O cartão de crédito com reserva de margem consignável, conhecido como RMC, tem gerado inúmeros conflitos entre consumidores e instituições financeiras. O tema ganhou relevância porque milhares de aposentados e pensionistas foram induzidos a acreditar que estavam contratando um empréstimo consignado comum, quando na realidade celebraram contrato de cartão de crédito consignado. A discussão envolve a abusividade dessa prática, a forma correta de restituição do indébito, a possibilidade de indenização por danos morais e a correta distribuição dos ônus de sucumbência.
Neste artigo, analisarei de forma detalhada esses pontos, com base no Código de Defesa do Consumidor, na Constituição Federal, em súmulas de tribunais e no entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça. O objetivo é esclarecer os direitos do consumidor e demonstrar como os tribunais têm decidido sobre o tema.
O que é o cartão de crédito consignado com RMC
O cartão de crédito consignado funciona como um cartão comum, mas com a peculiaridade de possuir a chamada reserva de margem consignável. Trata-se de um percentual fixo da renda do consumidor, geralmente aposentados e pensionistas do INSS, destinado ao desconto automático da fatura mínima em folha de pagamento.
Na prática, muitos consumidores acreditam estar contratando um empréstimo consignado comum. Porém, em vez de quitar parcelas fixas até a extinção da dívida, ficam sujeitos a descontos mensais da fatura mínima do cartão, o que perpetua a dívida.
O artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) dispõe:
“São direitos básicos do consumidor: a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem.”
Se o consumidor não recebe informação clara, ocorre vício de consentimento e violação direta do dever de transparência.
A abusividade do cartão de crédito consignado com RMC
O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás consolidou o entendimento sobre a matéria por meio da Súmula nº 63, que afirma:
“A contratação de cartão de crédito com reserva de margem consignável (RMC) será considerada abusiva nas hipóteses em que, por ausência de informação clara, adequada e precisa, o consumidor for induzido a acreditar que está contratando empréstimo consignado quando, na realidade, está celebrando contrato de cartão de crédito com direito a desconto em folha do valor da parcela mínima.”
Essa súmula evidencia que a abusividade ocorre sempre que houver falta de informação clara e indução ao erro. O consumidor idoso, de baixa renda e com pouca familiaridade com operações financeiras, é considerado hipervulnerável.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 230, estabelece a proteção especial à pessoa idosa. Logo, a prática de impor contratos confusos a esse público agrava a ilicitude da conduta bancária.
Além disso, o artigo 51, inciso IV, do CDC considera nulas as cláusulas que estabeleçam obrigações abusivas ou coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.
Portanto, a jurisprudência e a lei confirmam que a contratação de cartão de crédito consignado, sem plena ciência do consumidor, é abusiva.
Conversão para empréstimo consignado comum
Uma das soluções aplicadas pelos tribunais é a conversão do contrato de cartão de crédito consignado em empréstimo consignado comum.
A medida encontra respaldo no princípio da conservação dos contratos, previsto no artigo 113 do Código Civil, que determina que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Nesses casos, a dívida é recalculada como se fosse um empréstimo consignado, com parcelas fixas e prazo determinado, restabelecendo o equilíbrio contratual e evitando enriquecimento sem causa da instituição financeira.
Restituição do indébito: simples ou em dobro
O artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor dispõe:
“O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.”
O Superior Tribunal de Justiça pacificou a questão e estabeleceu que a restituição deve ocorrer de forma simples até 30 de março de 2021, e em dobro após essa data, independentemente de má-fé da instituição financeira.
Esse entendimento foi consolidado no julgamento do EAREsp 676.608/RS, em que o STJ fixou a tese de que a repetição do indébito independe de elemento volitivo.
Portanto, os valores descontados de forma indevida devem ser restituídos, primeiro de forma simples e, depois, em dobro.
Danos morais: quando são devidos
O reconhecimento da abusividade contratual não gera, automaticamente, direito a indenização por danos morais.
O Superior Tribunal de Justiça entende que a mera ilegalidade contratual pode configurar apenas aborrecimento. Contudo, quando há descontos indevidos sobre verbas alimentares, principalmente em benefícios previdenciários de idosos, a situação atinge a dignidade da pessoa humana.
O artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, protege a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando indenização em caso de violação.
Assim, o dano moral será reconhecido quando houver prova de que a conduta da instituição financeira causou efetiva privação de recursos essenciais, transtornos significativos ou violação da dignidade do consumidor.
Exemplo comum ocorre quando aposentados perdem parte significativa de sua renda alimentar, obrigando-os a recorrer ao Judiciário para reaver valores e reestruturar suas finanças.
Ônus sucumbenciais na ação judicial
Nas ações judiciais que envolvem cartão de crédito consignado com RMC, muitas vezes ambas as partes vencem e perdem em parte.
O artigo 86 do Código de Processo Civil determina:
“Se cada litigante for, em parte, vencedor e vencido, serão proporcionalmente distribuídas entre eles as despesas.”
Portanto, caso o consumidor obtenha a restituição do indébito, mas não consiga comprovar o dano moral, os honorários e custas devem ser repartidos entre as partes de forma proporcional.
Tentativa administrativa e acesso à Justiça
Algumas instituições financeiras argumentam que o consumidor deveria buscar solução administrativa antes de recorrer ao Judiciário. Esse entendimento não procede.
O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, garante que
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Logo, a tentativa administrativa não é requisito para ajuizar ação judicial. O consumidor pode buscar o Judiciário a qualquer momento.
Considerações finais
O cartão de crédito consignado com reserva de margem consignável é uma modalidade de crédito que, quando mal informada, se torna abusiva. A lei protege o consumidor contra práticas que o induzem ao erro, em especial quando envolve idosos e aposentados, considerados hipervulneráveis.
A jurisprudência consolidou que a restituição do indébito deve ocorrer de forma simples até março de 2021 e em dobro após essa data. Além disso, os danos morais só serão reconhecidos quando houver efetiva violação da dignidade do consumidor, especialmente pela retenção de verbas alimentares.
Por fim, os tribunais têm adotado a conversão do contrato em empréstimo consignado comum, medida que preserva o equilíbrio contratual e evita prejuízos desproporcionais ao consumidor.
Diante disso, fica claro que o consumidor lesado tem direito à revisão do contrato, à restituição dos valores pagos e, quando cabível, à indenização por danos morais.